Lembro como se fosse ontem meu primeiro dia no Banco do Brasil, na agência de Brejo Santo, Ceará. Era 27 de junho de 1967, uma terça-feira. Chegara no dia anterior para a posse. Meu pai fora de tarde me levar, na mesma pick-up Chevrolet em que eu depois aprenderia a dirigir. Morávamos em Crato. Cobríramos a distância em torno de 90km por caminhos de terra, inclusive na BR-116, porquanto naquele tempo havia asfalto só até Barbalha. José Ferreira, cunhado de minha mãe, casado com tia Nailée, me receberia em sua casa, defronte do Brejo Santo União Clube, e me hospedaria durante os quatro anos em que ali permaneceria.
O expediente começava às 13h. Sob uma árvore da longa praça principal da cidade, enquanto aguardava abrirem as portas da agência, conheci João Batista Carvalho, um outro do mesmo concurso e que se apresentaria como eu, para naquele dia também iniciar sua jornada profissional. Ambos trajávamos camisa branca de manga longa e gravata no pescoço. Dois precários (bancários novos, assim denominados pelos colegas veteranos).
Desde então testemunharia aquele período cheio de contradições, no mundo contemporâneo em convulsão, do trecho entre Brejo Santo e Crato; apenas em raros fins de semana aquietava canto no lugar do trabalho. Nas sextas-feiras de tarde, ou começo de noite, arrumava numa pequena bolsa alguns pertences e seguia para a estrada em busca de transporte. Deixara em Crato história rica de sonhos e relacionamentos. Gostava de cinema, bares, festas, passeios ao pé da serra e dos meus familiares, namoradas, etc.
Brejo Santo possuía seus atrativos, porém o peso dos sentimentos telúricos cratenses me arrastava de volta ao meu segundo berço, aonde chegara com quatro anos, em 1953. Sempre nutri pelo Crato uma quase paixão, fascinado por sua moldura de serras, as encostas do Lameiro em longas caminhadas a pé, o barro branco a colar na pele, bananeiras, pássaros, frutas doces, belas morenas; suas praças, sua gente, a água saborosa, a efervescência cultural, a política estudantil, informação vinda de fora pelas livrarias e bancas de revistas; o Jornal A Ação, que produzia com Vicelmo, Pedro Antônio, Armando Rafael, Huberto Cabral e Padre Honor, por mais de ano, com boa repercussão na comunidade; o Jogral Pasárgada, que fundara com outros seis jovens, no Colégio Diocesano, e sua larga demanda de apresentações.
Lembro, no entanto, de entrosamentos valiosos que estabeleci em Brejo Santo, tanto junto aos colegas do Banco, na maioria de outras localidades, quanto junto aos naturais do município, gente de reconhecida hospitalidade, laboriosa e de senso de realização, haja vista o progresso que, nos dias atuais, lhe movimenta e destaca no elenco das comunas interioranas, naquela fase só de modestas proporções.
Nessas pessoas especiais de quem preservo lembranças benfazejas, José Lirismar Macedo ocupa espaço próprio. Dada sua formação de radialista que vivera em centros maiores e trabalhara em importantes emissoras, Lirismar guardou consigo vivências que bem nutriram a nossa aproximação. Por seu intermédio, conheci e passei a admirar autores exponenciais da música brasileira e da literatura universal.
Ele despertou meu gosto por figuras inigualáveis tipo João Gilberto, Carlos Lira, Dorival Caymmi, Tom Jobim e outros, sobretudo da bossa nova, no âmbito musical; na literatura, dada influência sua conheci importantes obras, quais Os velhos marinheiros, de Jorge Amado; e Narciso e Goldmund, de Hermann Hesse, peças chave de minha formação, no meio de outras mais; e autores como o mineiro Fernando Sabino, para citar alguns poucos e trazer à tona poucos dos detalhes de nossas agradáveis conversações.
Nos finais explosivos dos anos 60, época demolidora e definidora dos rumos da história recente, ao meu lado, para compartilhar das minhas apreensões de resto de adolescência, havia a personalidade marcante deste amigo, o qual permanece no crivo fiel do meu reconhecimento em preito de notável consideração.
sábado, 25 de julho de 2009
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Perfil de Patativa do Assaré
Dimas Macedo
Nasci em 1956, na região Centro-Sul do Ceará, quase em confluência com o Cariri cearense e à relativa distância da cidade de Assaré, terra natal de Patativa. Sou produto, portanto, do grande sertão e acho, sinceramente, que fui ungido pelo signo que marcou a estréia de dois gigantes da literatura brasileira do século precedente.
1956, não podemos esquecer, é o ano da publicação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e de Inspiração Nordestina, de Patativa do Assaré. O que une estes dois escritores e o que os consagra é a originalidade com que recriaram, com linguagem nova, a ciranda das palavras, a partir da memória e da oralidade, valores com os quais o sertão sempre se reveste.
Se Riobaldo constitui o idioma poemático de Rosa e o engenho da sua versão encantatória do mundo, Patativa do Assaré é, ele próprio, um conjunto de engenhos e personas e de representações pragmáticas que empresta voz aos excluídos: um Riobaldo castigado pela inclemência das secas, a lapidar o ouro das palavras e a reconstruir o chão da esperança.
Assim como o autor de Sagarana, Patativa do Assaré inventou uma linguagem e um estilo literário próprios e criou um dialeto linguístico de raízes predominantementes sertanejas, ligadas à oralidade e ao cancioneiro, lembrando, neste ponto, a constituição da língua brasileira, fundada por José de Alencar. E nisto, com certeza, reside a genialidade múltipla e singular da sua produção artesanal.
Patativa é, a seu turno, a encarnação viva do sertão, a palavra enquanto instrumento de denúncia, a significação sinfônica do silêncio, a oralidade que mapeia e ordena a literatura e a gramática que se fazem, por fim, transmutadas ao campo da escrita.
Conta o poeta Patativa que, aos oito anos, ouvindo a melodia e o gorgeio dos pássaros, despertou definitivamente para os grandes sentidos da palavra e da sua existência no mundo, pois que a natureza possui uma lei eterna e infalível e que aos deuses e poetas é facultada a criação enquanto princípio de interpretação de todas as coisas existentes.
O homem, com certeza, não é grande pela sua erudição ou pela sua razão ou pela capacidade de domínio com que enfrenta as convenções e se adapta à liturgia do poder. Ele é eterno, ao contrário, pela fundação da sua verdade pessoal e pela formação do seu mito face aos desafios da realidade que lhe é circundante.
Se Rosa deu voz a Riobaldo e Riobaldo deu voz ao sertão dos tangedores de gado e bandoleiros do Meridional, Patativa do Assaré falou, com destemor e bravura, de homens e mulheres imantados ao chão do latifúndio e excluídos do processo político e social.
Não foi, como pensam certos setores da cultura livresca e acadêmica, um poeta ingênuo e apartado dos valores da língua e da gramática. Estudou manuais de versificação, soube aceitar a cegueira completa de um olho, aos cinco anos de idade, como sinal do destino ou da predestinação que faria dele uma espécie de Camões sertanejo ou, melhor dizendo, um Homero do semi-árido nordestino.
Em Castro Alves viu a expressão maior da poesia do Brasil. Apaixonou-se, desde cedo, pelo social. Tornou-se, com o tempo, um homem destemido e exasperadamente verdadeiro e sincero. Proclamou a verdade e a justiça como paradigmas. Foi atingido pela repressão e a censura. Foi detido por questionar, em versos de bom feitio literário, a legitimidade de certo gestor da sua terra. E foi um defensor exaltado da poesia como valor maior da sua passagem entre nós. Fez da denúncia o seu apostolado e dos seus recursos vocais e estilísticos a expressão maior do seu alto poder de criação.
Foi um prodigioso memorialista e um político sutil e maneiroso das reinvidicações da cearensidade e da nordestinidade sertanejas. Lutou pela Anistia e as Diretas, opôs-se ao poder oficial, e apoiou, no Ceará, a luta pela modernidade da política e do governo, fazendo, por fim, de Assaré, o maior e o mais astucioso atalho do sertão.
Memorizou e fez a melodia de quase uma dezena de poemas que foram musicados e que se tornaram bastante conhecidos no Brasil. Gravou, com a sua voz de passarinho, uma meia dúzia de discos e CDs. E se fez partícipe, como arranjador ou letrista, de outros cinquenta discos e compactos. Foi ator de novela e de cinema, declamador da radiofonia, cantador de viola, cordelista, sonetista e improvisador de apurada técnica literária.
Sobre ele foram escritos diversos livros e opúsculos e, bem assim, teve a sua obra estudada em variadas teses e ensaios. Mas Patativa, é certo, apesar de conhecer diversos estados do Brasil, sempre viveu em Assaré, onde nasceu aos 5 de março de 1909 e onde faleceu aos 8 de julho de 2002.
Teve não mais que quatro meses de escolaridade. Sobreviveu do plantio de grãos e da lavoura da terra. Sempre botou roças no inverno e, nos anos de seca, passou necessidades e agruras e militou, durante toda a vida, em soberano estado de pobreza. Quando largou a viola, em 1962, os emblemas da voz e da palavra ritmada passaram a ser o ganha-pão.
Não cantou os seus males pessoais, nem as suas desditas, nem o seu penar. E não vangloriou a sua condição de mito ou poeta de projeção nacional.
Rejeitado pela cultura letrada da Academia, tornou-se, em Fortaleza, nome de um Centro Acadêmico de uma Faculdade de Letras, no contexto da UFC. O seu nome não consta nos compêndios oficiais da literatura cearense, mas o seu cânon é um dos mais apreciados do Brasil. É um dos poetas que mais vendem livros entre nós, ao lado, talvez, de Castro Alvos e de Drummond. A Editora Hedra, de São Paulo, já republicou quase todos os seus livros. E a Editora Vozes, de Petrópolis, já reeditou uma quinzena de vezes o seu Cante Lá Que Eu Canto Cá, com milhares de exemplares vendidos em todos os recantos do Brasil.
A Academia Cearense de Letras não o elegeu para os seus quadros e o teve sempre na linha da poesia popular, julgada, pelos homens do fardão acadêmico, de extração inferior. As Universidades cearenses, inicialmente e durante toda a sua vida, se mantiveram longe do seu nome; mas, quando ele passou a ser traduzido e estudado em Universidades francesas e inglesas, resolveram lhe conferir honras acadêmicas. Se tornou Doutor Honoris Causa em quatro dessas instituições. Mas nesta ordem, necessariamente: primeiro os leitores, em seguida a mídia, depois as medalhas e o coroamento oficial e, por último, a distribuição das láureas acadêmicas.
Patativa, no entanto, é muito maior do que isto. É um gigante das letras e um grande poeta da tradição popular ocidental. A sua poesia se impõe. A sua expressão cultural sempre se levanta. E a sua melodia é a costura precisa com que ele se anuncia músico. E expõe a sua condição de oráculo. É o arauto maior do nosso povo e a síntese de tudo o que veio antes dele, em termos de cultura sertaneja e de representação dos excluídos que nunca poderam falar.
Antônio Gonçalves da Silva é o seu nome. O lugar em que nasceu chama-se Serra de Santana, a dezoito quilometros do centro de Assaré. Seus pais eram agricultores. Viviam do plantio e da lavoura da terra. E assim também seus irmãos e seus familiares. Casou-se com uma parenta, dona Belarmina Paes Cidrão, e tiveram, em comum, uma boa ninhada de filhos.
Aos vinte anos, levado por um primo, fez uma viagem ao Estado do Pará, onde viveu de cantorias e arribações, sendo, pelo folclorista cearense, José Carvalho de Brito, ali residente, cognominado de Patativa. Brito o devolveu ao Ceará, com carta de apresentação a Juvenal Galeno. Foi aplaudido em Fortaleza, mas o destino o levou de volta para o sertão do Ceará.
Recolheu-se na Serra de Santana e em Assaré entre 1930 e 1945, aproximadamente. Seu nome se espalhou pela serra e pelo vale, ganhou o sertão dos Inhamuns e desceu soberano pelas águas mansas do rio Jaguaribe. Cantou, de viola em punho, em cidades vizinhas e adotou, como pseudônimo, aquele pelo qual se tornou universalmente conhecido – Patativa do Assaré, tamanha a revoada de Patativas, nessa época, por todo o Ceará.
Em 1955, foi ouvido por um velho e bom intelectual do Ceará, radicado no Rio, José Arraes de Alencar, quando declamava, na Rádio Araripe do Crato, os seus poemas de expressivo gosto musical. Nasceu, a partir deste fato, o poeta com direito a livro publicado. Inspiração Nordestina, de 1956, é, portanto, o seu primeiro livro de poemas.
O segundo viria em 1970. Não um livro autoral do próprio Patativa, mas um conjunto de poemas organizado pelo folclorista J. de Figueiredo Filho – Patativa do Assaré: Novos Poemas Comentados.
Em 1978 vem a lume o seu livro mais conhecido – Cante Lá Que Eu Canto Cá, publicado pela Editora Vozes, de Petrópolis, em convênio com a Fundação Padre Ibiapina, do Crato, com apresentações de Plácido Cidade Nuvens e do Padre Francisco Salatiel de Alencar.
Ispinho e Fulô seria a sua próxima coletânea de poemas, organizada por Rosemberg Cariri e publicada em 1988, com apresentação e estudo-reportagem do próprio Rosemberg, que produziu, sobre o poeta, documentários importantes no campo das artes visuais.
O que veio em seguida, em matéria de livros, está condensado nos seguintes títulos: Aqui Tem Coisa, publicado em 1994, pela Secretaria de Cultura do Estado, e Cordéis (Fortaleza, Editora da UFC, 1999), reunião, em único volume, do básico que foi produzido nessa área pelo grande poeta cearense. Devemos a Gilmar de Carvalho, o maior estudioso da sua vida e da sua produção, a organização desse livro-monumento, que foi adotado, como livro-texto, em vestibulares da UFC.
A fortuna crítica de Patativa do Assaré é imensa e diversificada. Existem altos e baixos nessa produção. Aponto o volume de Plácido Cidade Nuvens – Patativa do Assaré e o Universo Fascinante do Sertão (1995) como ponto de partida, pois é um livro de comentários fabulosos e impressionistas onde se ouve a voz do coração. O livro segue a tradição dos estudos caririenses sobre o poeta, a começar por J. de Figueiredo Filho (1970) e que tem prosseguimento com Francisco de Assis Brito, com seu conjunto de ensaios – O Metapoema em Patativa do Assaré: Uma Introdução ao Pensamento Literário do Poeta (1984).
Outro roteiro interessante sobre Patativa é o que se acha condensado em O Poeta do Povo: Vida e Obra de Patativa do Assaré, de autoria de Assis Ângelo, acompanhado de um CD com poemas declamados pelo poeta (São Paulo, CPC-Umes, 1999). Este livro, de formato gráfico belíssimo, pode e deve ser lido paralelamente com o suporte da antologia de Sylvie Debs – Patativa do Assaré: Uma Voz do Nordeste (São Paulo, Editora Hedra, 2000), no âmbito da coleção Biblioteca de Cordel e cujo estudo que a antecede eu igualmente recomendo.
Gilmar de Carvalho publicou a melhor e a mais extensa entrevista concedida pelo poeta – Patativa Poeta Pássaro do Assaré (2000) e é autor do eruditíssimo e bem concatenado livro de ensaios e estudos – Patativa do Assaré: Pássaro Liberto, editado pelo Museu do Ceará, em 2002. Organizou também a melhor e a mais criteriosa antologia poética do autor, publicada em Fortaleza, em 2001, pelas Ediçoes Demócrito Rocha. Em 2000 deu à lume um precioso livro de bolso, contendo uma síntese didática e pedagógica em torno da vida e da obra do poeta.
Tadeu Feitosa, professor da UFC e jornalista, é o organizador do bonito álbum de textos e fotografias do poeta e do seu entorno sertanejo, publicado pela Editora Escrituras de São Paulo, em 2001. E é autor, por igual, do ensaio crítico-interpretativo do poeta, intitulado Patativa do Assaré: A Trajetória de um Canto, também da Editora Escrituras (2005), que é, no caso, a sua tese de Doutorado em Sociologia.
O livro de Cláudio Henrique Sales Andrade, As Razões da Emoção: Capítulos de uma Poética Sertaneja (Fortaleza, Editora da UFC, 2004), é o resultado de uma Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Trata-se de um ensaio instigante e muito bem fundamentado em torno da poética de Patativa e da sua grande autenticidade. Uma leitura crítica, por assim dizer, tecida com as luzes da razão e da sensibilidade, acompanhada de uma pesquisa de campo que nos encanta com a sua riqueza. Um livro para ser lido e intuido, pensado e degustado como todas as boas iguarias que somente o sertão sabe oferecer.
A despeito das reclamações de Gilmar de Carvalho, de que o poeta foi esquecido pelos reelaboradores da nossa historiografia literária, alguns passos, pelo menos, foram dados neste campo: Oswald Barroso e Alexandre Barbalho incluíram Patativa na antologia – Letras ao Sol (Fortaleza, Edições Demócrito Rocha, 1998), o que já é um avanço.
Em 2001, Patativa viria a figurar na coletânea – Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizada por José Nêumane Pinto e publicada pela Geração Editorial, de São Paulo. E em 2006, passou a fazer parte da Coleção Os Melhores Poemas, da Editora Global, também de São Paulo, o que já é uma consagração. A antologia, organizada por Cláudio Portela, é uma das mais volumosas dessa coleção, e é antecedida de uma introdução bastante apressada e resumida, mas o roteiro de fontes, no final do volume, é razoavelmente bem pesquisado, apesar da confusão metodológica em que se enreda o organizador, que foi prejudicado, acredito, pelo suporte técnico e revisional da Editora.
Antes, em 1989, no meu livro A Metáfora do Sol, no âmbito do ensaio - “Sobre a Formação das Letras Cearenses” - , eu já havia, pioneiramente, arrolado o poeta Patativa qual um nome emblemático da literatura que se produziu no Ceará, isto é, da literatura cearense tomada a partir da sua evolução e abrangência histórica.
Ali divisei em Patativa a grande voz social da poesia cearense e também me referi à ressonância nacional da sua poesia. E registrei, ademais, que os seus livros “são atestados inequívocos da afirmação de um poeta de quem todo o Ceará se orgulha e em cuja obra o Ceará se vê também retratado”.
Por fim, faço minha as palavras de Gilmar de Carvalho, no sentido de que “Patativa do Assaré é a grande voz da poesia do Brasil”, não sei se “de todos os tempos”, mas, com certeza, a voz mais legítima, a mais expressiva e aquela em que a verdade e a justiça, a língua e a cultura melhor se encontram, em busca de um sentido novo para a identidade mais profunda do Brasil. Refiro-me ao Brasil que as elites tentaram dizimar mas nunca conseguiram, porque não somos, em essência, um Estado sem nação, e porque a nação é o pluralismo de suas etnias e o somatório das suas diferenças.
Dimas Macedo
dim.macedo@hotmail.com
Nasci em 1956, na região Centro-Sul do Ceará, quase em confluência com o Cariri cearense e à relativa distância da cidade de Assaré, terra natal de Patativa. Sou produto, portanto, do grande sertão e acho, sinceramente, que fui ungido pelo signo que marcou a estréia de dois gigantes da literatura brasileira do século precedente.
1956, não podemos esquecer, é o ano da publicação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e de Inspiração Nordestina, de Patativa do Assaré. O que une estes dois escritores e o que os consagra é a originalidade com que recriaram, com linguagem nova, a ciranda das palavras, a partir da memória e da oralidade, valores com os quais o sertão sempre se reveste.
Se Riobaldo constitui o idioma poemático de Rosa e o engenho da sua versão encantatória do mundo, Patativa do Assaré é, ele próprio, um conjunto de engenhos e personas e de representações pragmáticas que empresta voz aos excluídos: um Riobaldo castigado pela inclemência das secas, a lapidar o ouro das palavras e a reconstruir o chão da esperança.
Assim como o autor de Sagarana, Patativa do Assaré inventou uma linguagem e um estilo literário próprios e criou um dialeto linguístico de raízes predominantementes sertanejas, ligadas à oralidade e ao cancioneiro, lembrando, neste ponto, a constituição da língua brasileira, fundada por José de Alencar. E nisto, com certeza, reside a genialidade múltipla e singular da sua produção artesanal.
Patativa é, a seu turno, a encarnação viva do sertão, a palavra enquanto instrumento de denúncia, a significação sinfônica do silêncio, a oralidade que mapeia e ordena a literatura e a gramática que se fazem, por fim, transmutadas ao campo da escrita.
Conta o poeta Patativa que, aos oito anos, ouvindo a melodia e o gorgeio dos pássaros, despertou definitivamente para os grandes sentidos da palavra e da sua existência no mundo, pois que a natureza possui uma lei eterna e infalível e que aos deuses e poetas é facultada a criação enquanto princípio de interpretação de todas as coisas existentes.
O homem, com certeza, não é grande pela sua erudição ou pela sua razão ou pela capacidade de domínio com que enfrenta as convenções e se adapta à liturgia do poder. Ele é eterno, ao contrário, pela fundação da sua verdade pessoal e pela formação do seu mito face aos desafios da realidade que lhe é circundante.
Se Rosa deu voz a Riobaldo e Riobaldo deu voz ao sertão dos tangedores de gado e bandoleiros do Meridional, Patativa do Assaré falou, com destemor e bravura, de homens e mulheres imantados ao chão do latifúndio e excluídos do processo político e social.
Não foi, como pensam certos setores da cultura livresca e acadêmica, um poeta ingênuo e apartado dos valores da língua e da gramática. Estudou manuais de versificação, soube aceitar a cegueira completa de um olho, aos cinco anos de idade, como sinal do destino ou da predestinação que faria dele uma espécie de Camões sertanejo ou, melhor dizendo, um Homero do semi-árido nordestino.
Em Castro Alves viu a expressão maior da poesia do Brasil. Apaixonou-se, desde cedo, pelo social. Tornou-se, com o tempo, um homem destemido e exasperadamente verdadeiro e sincero. Proclamou a verdade e a justiça como paradigmas. Foi atingido pela repressão e a censura. Foi detido por questionar, em versos de bom feitio literário, a legitimidade de certo gestor da sua terra. E foi um defensor exaltado da poesia como valor maior da sua passagem entre nós. Fez da denúncia o seu apostolado e dos seus recursos vocais e estilísticos a expressão maior do seu alto poder de criação.
Foi um prodigioso memorialista e um político sutil e maneiroso das reinvidicações da cearensidade e da nordestinidade sertanejas. Lutou pela Anistia e as Diretas, opôs-se ao poder oficial, e apoiou, no Ceará, a luta pela modernidade da política e do governo, fazendo, por fim, de Assaré, o maior e o mais astucioso atalho do sertão.
Memorizou e fez a melodia de quase uma dezena de poemas que foram musicados e que se tornaram bastante conhecidos no Brasil. Gravou, com a sua voz de passarinho, uma meia dúzia de discos e CDs. E se fez partícipe, como arranjador ou letrista, de outros cinquenta discos e compactos. Foi ator de novela e de cinema, declamador da radiofonia, cantador de viola, cordelista, sonetista e improvisador de apurada técnica literária.
Sobre ele foram escritos diversos livros e opúsculos e, bem assim, teve a sua obra estudada em variadas teses e ensaios. Mas Patativa, é certo, apesar de conhecer diversos estados do Brasil, sempre viveu em Assaré, onde nasceu aos 5 de março de 1909 e onde faleceu aos 8 de julho de 2002.
Teve não mais que quatro meses de escolaridade. Sobreviveu do plantio de grãos e da lavoura da terra. Sempre botou roças no inverno e, nos anos de seca, passou necessidades e agruras e militou, durante toda a vida, em soberano estado de pobreza. Quando largou a viola, em 1962, os emblemas da voz e da palavra ritmada passaram a ser o ganha-pão.
Não cantou os seus males pessoais, nem as suas desditas, nem o seu penar. E não vangloriou a sua condição de mito ou poeta de projeção nacional.
Rejeitado pela cultura letrada da Academia, tornou-se, em Fortaleza, nome de um Centro Acadêmico de uma Faculdade de Letras, no contexto da UFC. O seu nome não consta nos compêndios oficiais da literatura cearense, mas o seu cânon é um dos mais apreciados do Brasil. É um dos poetas que mais vendem livros entre nós, ao lado, talvez, de Castro Alvos e de Drummond. A Editora Hedra, de São Paulo, já republicou quase todos os seus livros. E a Editora Vozes, de Petrópolis, já reeditou uma quinzena de vezes o seu Cante Lá Que Eu Canto Cá, com milhares de exemplares vendidos em todos os recantos do Brasil.
A Academia Cearense de Letras não o elegeu para os seus quadros e o teve sempre na linha da poesia popular, julgada, pelos homens do fardão acadêmico, de extração inferior. As Universidades cearenses, inicialmente e durante toda a sua vida, se mantiveram longe do seu nome; mas, quando ele passou a ser traduzido e estudado em Universidades francesas e inglesas, resolveram lhe conferir honras acadêmicas. Se tornou Doutor Honoris Causa em quatro dessas instituições. Mas nesta ordem, necessariamente: primeiro os leitores, em seguida a mídia, depois as medalhas e o coroamento oficial e, por último, a distribuição das láureas acadêmicas.
Patativa, no entanto, é muito maior do que isto. É um gigante das letras e um grande poeta da tradição popular ocidental. A sua poesia se impõe. A sua expressão cultural sempre se levanta. E a sua melodia é a costura precisa com que ele se anuncia músico. E expõe a sua condição de oráculo. É o arauto maior do nosso povo e a síntese de tudo o que veio antes dele, em termos de cultura sertaneja e de representação dos excluídos que nunca poderam falar.
Antônio Gonçalves da Silva é o seu nome. O lugar em que nasceu chama-se Serra de Santana, a dezoito quilometros do centro de Assaré. Seus pais eram agricultores. Viviam do plantio e da lavoura da terra. E assim também seus irmãos e seus familiares. Casou-se com uma parenta, dona Belarmina Paes Cidrão, e tiveram, em comum, uma boa ninhada de filhos.
Aos vinte anos, levado por um primo, fez uma viagem ao Estado do Pará, onde viveu de cantorias e arribações, sendo, pelo folclorista cearense, José Carvalho de Brito, ali residente, cognominado de Patativa. Brito o devolveu ao Ceará, com carta de apresentação a Juvenal Galeno. Foi aplaudido em Fortaleza, mas o destino o levou de volta para o sertão do Ceará.
Recolheu-se na Serra de Santana e em Assaré entre 1930 e 1945, aproximadamente. Seu nome se espalhou pela serra e pelo vale, ganhou o sertão dos Inhamuns e desceu soberano pelas águas mansas do rio Jaguaribe. Cantou, de viola em punho, em cidades vizinhas e adotou, como pseudônimo, aquele pelo qual se tornou universalmente conhecido – Patativa do Assaré, tamanha a revoada de Patativas, nessa época, por todo o Ceará.
Em 1955, foi ouvido por um velho e bom intelectual do Ceará, radicado no Rio, José Arraes de Alencar, quando declamava, na Rádio Araripe do Crato, os seus poemas de expressivo gosto musical. Nasceu, a partir deste fato, o poeta com direito a livro publicado. Inspiração Nordestina, de 1956, é, portanto, o seu primeiro livro de poemas.
O segundo viria em 1970. Não um livro autoral do próprio Patativa, mas um conjunto de poemas organizado pelo folclorista J. de Figueiredo Filho – Patativa do Assaré: Novos Poemas Comentados.
Em 1978 vem a lume o seu livro mais conhecido – Cante Lá Que Eu Canto Cá, publicado pela Editora Vozes, de Petrópolis, em convênio com a Fundação Padre Ibiapina, do Crato, com apresentações de Plácido Cidade Nuvens e do Padre Francisco Salatiel de Alencar.
Ispinho e Fulô seria a sua próxima coletânea de poemas, organizada por Rosemberg Cariri e publicada em 1988, com apresentação e estudo-reportagem do próprio Rosemberg, que produziu, sobre o poeta, documentários importantes no campo das artes visuais.
O que veio em seguida, em matéria de livros, está condensado nos seguintes títulos: Aqui Tem Coisa, publicado em 1994, pela Secretaria de Cultura do Estado, e Cordéis (Fortaleza, Editora da UFC, 1999), reunião, em único volume, do básico que foi produzido nessa área pelo grande poeta cearense. Devemos a Gilmar de Carvalho, o maior estudioso da sua vida e da sua produção, a organização desse livro-monumento, que foi adotado, como livro-texto, em vestibulares da UFC.
A fortuna crítica de Patativa do Assaré é imensa e diversificada. Existem altos e baixos nessa produção. Aponto o volume de Plácido Cidade Nuvens – Patativa do Assaré e o Universo Fascinante do Sertão (1995) como ponto de partida, pois é um livro de comentários fabulosos e impressionistas onde se ouve a voz do coração. O livro segue a tradição dos estudos caririenses sobre o poeta, a começar por J. de Figueiredo Filho (1970) e que tem prosseguimento com Francisco de Assis Brito, com seu conjunto de ensaios – O Metapoema em Patativa do Assaré: Uma Introdução ao Pensamento Literário do Poeta (1984).
Outro roteiro interessante sobre Patativa é o que se acha condensado em O Poeta do Povo: Vida e Obra de Patativa do Assaré, de autoria de Assis Ângelo, acompanhado de um CD com poemas declamados pelo poeta (São Paulo, CPC-Umes, 1999). Este livro, de formato gráfico belíssimo, pode e deve ser lido paralelamente com o suporte da antologia de Sylvie Debs – Patativa do Assaré: Uma Voz do Nordeste (São Paulo, Editora Hedra, 2000), no âmbito da coleção Biblioteca de Cordel e cujo estudo que a antecede eu igualmente recomendo.
Gilmar de Carvalho publicou a melhor e a mais extensa entrevista concedida pelo poeta – Patativa Poeta Pássaro do Assaré (2000) e é autor do eruditíssimo e bem concatenado livro de ensaios e estudos – Patativa do Assaré: Pássaro Liberto, editado pelo Museu do Ceará, em 2002. Organizou também a melhor e a mais criteriosa antologia poética do autor, publicada em Fortaleza, em 2001, pelas Ediçoes Demócrito Rocha. Em 2000 deu à lume um precioso livro de bolso, contendo uma síntese didática e pedagógica em torno da vida e da obra do poeta.
Tadeu Feitosa, professor da UFC e jornalista, é o organizador do bonito álbum de textos e fotografias do poeta e do seu entorno sertanejo, publicado pela Editora Escrituras de São Paulo, em 2001. E é autor, por igual, do ensaio crítico-interpretativo do poeta, intitulado Patativa do Assaré: A Trajetória de um Canto, também da Editora Escrituras (2005), que é, no caso, a sua tese de Doutorado em Sociologia.
O livro de Cláudio Henrique Sales Andrade, As Razões da Emoção: Capítulos de uma Poética Sertaneja (Fortaleza, Editora da UFC, 2004), é o resultado de uma Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Trata-se de um ensaio instigante e muito bem fundamentado em torno da poética de Patativa e da sua grande autenticidade. Uma leitura crítica, por assim dizer, tecida com as luzes da razão e da sensibilidade, acompanhada de uma pesquisa de campo que nos encanta com a sua riqueza. Um livro para ser lido e intuido, pensado e degustado como todas as boas iguarias que somente o sertão sabe oferecer.
A despeito das reclamações de Gilmar de Carvalho, de que o poeta foi esquecido pelos reelaboradores da nossa historiografia literária, alguns passos, pelo menos, foram dados neste campo: Oswald Barroso e Alexandre Barbalho incluíram Patativa na antologia – Letras ao Sol (Fortaleza, Edições Demócrito Rocha, 1998), o que já é um avanço.
Em 2001, Patativa viria a figurar na coletânea – Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizada por José Nêumane Pinto e publicada pela Geração Editorial, de São Paulo. E em 2006, passou a fazer parte da Coleção Os Melhores Poemas, da Editora Global, também de São Paulo, o que já é uma consagração. A antologia, organizada por Cláudio Portela, é uma das mais volumosas dessa coleção, e é antecedida de uma introdução bastante apressada e resumida, mas o roteiro de fontes, no final do volume, é razoavelmente bem pesquisado, apesar da confusão metodológica em que se enreda o organizador, que foi prejudicado, acredito, pelo suporte técnico e revisional da Editora.
Antes, em 1989, no meu livro A Metáfora do Sol, no âmbito do ensaio - “Sobre a Formação das Letras Cearenses” - , eu já havia, pioneiramente, arrolado o poeta Patativa qual um nome emblemático da literatura que se produziu no Ceará, isto é, da literatura cearense tomada a partir da sua evolução e abrangência histórica.
Ali divisei em Patativa a grande voz social da poesia cearense e também me referi à ressonância nacional da sua poesia. E registrei, ademais, que os seus livros “são atestados inequívocos da afirmação de um poeta de quem todo o Ceará se orgulha e em cuja obra o Ceará se vê também retratado”.
Por fim, faço minha as palavras de Gilmar de Carvalho, no sentido de que “Patativa do Assaré é a grande voz da poesia do Brasil”, não sei se “de todos os tempos”, mas, com certeza, a voz mais legítima, a mais expressiva e aquela em que a verdade e a justiça, a língua e a cultura melhor se encontram, em busca de um sentido novo para a identidade mais profunda do Brasil. Refiro-me ao Brasil que as elites tentaram dizimar mas nunca conseguiram, porque não somos, em essência, um Estado sem nação, e porque a nação é o pluralismo de suas etnias e o somatório das suas diferenças.
Dimas Macedo
dim.macedo@hotmail.com
sexta-feira, 3 de julho de 2009
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